O coronel tinha uma mulher. Diferentemente dos outros coronéis, tinha só essa. Diziam que realmente a amou “na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de sua vida”, exatamente como prometeu diante daquele padre, muitos anos atrás, na inauguração da igreja que ele próprio mandou construir.
A mulher do coronel era quase tão famosa quanto ele. Tinha predicados ímpares na cozinha e um amor incondicional pelos netos, principalmente. Era só um deles ameaçar aparecer que lá ia ela pra cozinha. Seis da manhã. Bolo de laranja, milho, fubá, chocolate e coco. Pudim de leite, rocambole, torta de frango, de limão, de legumes, goiabada, marmelada e bananada. Doce de mamão, de abóbora, de figo, de pêssego e o mais esperado, o doce de leite.
Com coco, sem coco, em pasta ou em pedaços, não havia quem resistisse. Era o doce de leite mais cheiroso e gostoso de que já se ouvira falar em toda a Coronel Benedito. E até fora da região o tal doce era sucesso. Conta-se que uma vez, uma das netas levou uns pedaços e presenteou os amigos da faculdade. Desde então, há gente que nunca mais comeu outro doce de leite que não fosse daquele.
Quando os netos chegavam, lá pelo meio da tarde, estava a mesa repleta das guloseimas, todas rigorosamente arrumadas sobre a toalha de flores grandes e alaranjadas. Na cabeceira, o coronel esperava ansiosamente cada um descer o degrau entre a sala e a cozinha. O olho no relógio de bolso, que há, no mínimo, 50 anos ele dava cordas religiosamente toda manhã, dava conta da neta atrasada.
O coronel gostava de recebê-los. Atrapalhava-se com os nomes, chamava um querendo falar com o outro, confundia sempre Mariana e Luciana, embora fossem completamente diferentes. Mas também, a família não colaborava. Se já ficava difícil gravar tantos netos, ficou pior ainda quando começaram a aparecer os bisnetos. Para falar deles, achava sempre seguro ter a mulher ao lado para qualquer deslize ao nominá-los.
E era sempre ao lado mesmo que o coronel tinha a mulher. Enquanto encabeçava a mesa repleta de netos que falavam alto, riam e devoravam todos aqueles quitutes, o coronel pensava em como era bom vê-los ali. Aquele azul de seus olhos, destacados ainda mais pelos poucos fios de cabelos brancos que ainda lhe restavam, denunciava toda a sua satisfação. Ficava tudo ainda mais claro quando a mulher do coronel, sem nada dizer, colocava-lhe a mão sobre o ombro e dava uns tapinhas de leve, repartindo com ele a sensação de dever cumprido.
Era então ai que o coronel começa a conversar de fato com os netos, que deixam a bagunça de lado para lhe dar atenção. Conversava sobre a cotação do café com o neto economista, sobre a tragédia da queda do avião com as netas jornalistas, procurava entender com a neta advogada algo que nunca lhe entrava na idéia. Era sempre o papo final antes de o coronel levar os netos para a beira da piscina e começar, naquele final de tarde, a contar seus causos.
Eram netos e netas, filhos e filhas, todos amontoados ao redor do coronel, que diante do pôr-do-sol ao fundo, parecia um sábio que pregava. E de fato era. Um sábio contador de história, de anedotas que tiravam longas gargalhadas dos presentes. Não era raro acontecer num desses encontros que alguém lhe pedisse que contasse pela milésima vez a história do dia em que uns amigos foram lhe visitar e foram parados por uma blitz rodoviária. Era um acontecimento muito engraçado e muitos dos que ali estavam haviam presenciado o desenrolar. Os que não conheciam, rolavam de rir. Os que já tinham ouvido, riam ainda mais. E assim ia-se o fim de tarde, a noite e parte da madrugada toda ali entre as lembranças do coronel.
sábado, 22 de novembro de 2008
terça-feira, 4 de novembro de 2008
O primo famoso
“Ao primo Coronel, uma saudosa lembrança, do primo Zé.”
Está assim, desse jeitinho, escrito a próprio punho pelo Zé, na primeira página do livro que o coronel ganhara de presente durante uma noite de autógrafos. O mimo fora enviado pela neta, uma vez que o coronel não estava em Florianópolis na ocasião. Mas ela o representou bem e recebeu todas as honras e cumprimentos do primo ao sentar-se à mesa, ao lado dele e, meio tímida, sussurrar-lhe:
- Zé, eu sou neta do Coronel Benedito, seu primo. Lembra dele?
- E como não me lembraria de tão grande figura? Como está o primo?
- Tá bem, mora ainda no mesmo lugar e te mandou lembranças.
- Então entrega esse livro aqui pra ele. Diz que tenho vontade de revê-lo. E escuta, me diga cá uma coisa, o primo ainda anda?
E o coronel por acaso lá era de homem de não andar? Até parece que o primo não o conhecia mais... Todo dia revisava pé por pé de todo aquele cafezal, centímetro por centímetro de toda aquela terra e parava só no final da tarde para contemplar o pôr-do-sol no majestoso rio que banhava os fundos da propriedade. E como é que o Zé tem coragem de perguntar se o coronel ainda anda!?! Há muito mesmo que certamente não o via!
Coronel e Zé eram primos legítimos. Por parte de mãe. Zé cresceu e virou jornalista. O coronel cresceu e... bem... o coronel virou coronel, oras! E o Zé, emocionado com a lembrança, lhe enviara o livro de presente. Lá em Coronel Benedito todo mundo sabia que o coronel era primo de jornalista e isso lhe dava ainda mais prestigio. “Sabe que o coronel tem primo jornalista na cidade grande né, fulano? Diz que manda sempre livro autografado pra ele. Ainda agorinha chegou um que a neta trouxe”, comentava-se no povoado.
Parece que a história era sobre tropeiros, algo assim. O Zé fazia jornalismo rural, assunto que interessava muito ao primo coronel. Principalmente quando Zé aparecia na televisão falando sobre café. Ah, como o café era importante ao coronel. Não passava um dia sem consultar a cotação da saca. “O Zé devia era escrever um livro sobre o café. Já fez sobre a laranja, não custa fazer sobre o café. É até mais fácil...”, pensava o coronel enquanto a neta lhe dizia que há pouco havia estado com o primo famoso do avô.
- Diz ao primo que qualquer hora apareço pra vê-lo!, concluía Zé.
A neta do coronel ainda estava em choque com a pergunta anterior...
Está assim, desse jeitinho, escrito a próprio punho pelo Zé, na primeira página do livro que o coronel ganhara de presente durante uma noite de autógrafos. O mimo fora enviado pela neta, uma vez que o coronel não estava em Florianópolis na ocasião. Mas ela o representou bem e recebeu todas as honras e cumprimentos do primo ao sentar-se à mesa, ao lado dele e, meio tímida, sussurrar-lhe:
- Zé, eu sou neta do Coronel Benedito, seu primo. Lembra dele?
- E como não me lembraria de tão grande figura? Como está o primo?
- Tá bem, mora ainda no mesmo lugar e te mandou lembranças.
- Então entrega esse livro aqui pra ele. Diz que tenho vontade de revê-lo. E escuta, me diga cá uma coisa, o primo ainda anda?
E o coronel por acaso lá era de homem de não andar? Até parece que o primo não o conhecia mais... Todo dia revisava pé por pé de todo aquele cafezal, centímetro por centímetro de toda aquela terra e parava só no final da tarde para contemplar o pôr-do-sol no majestoso rio que banhava os fundos da propriedade. E como é que o Zé tem coragem de perguntar se o coronel ainda anda!?! Há muito mesmo que certamente não o via!
Coronel e Zé eram primos legítimos. Por parte de mãe. Zé cresceu e virou jornalista. O coronel cresceu e... bem... o coronel virou coronel, oras! E o Zé, emocionado com a lembrança, lhe enviara o livro de presente. Lá em Coronel Benedito todo mundo sabia que o coronel era primo de jornalista e isso lhe dava ainda mais prestigio. “Sabe que o coronel tem primo jornalista na cidade grande né, fulano? Diz que manda sempre livro autografado pra ele. Ainda agorinha chegou um que a neta trouxe”, comentava-se no povoado.
Parece que a história era sobre tropeiros, algo assim. O Zé fazia jornalismo rural, assunto que interessava muito ao primo coronel. Principalmente quando Zé aparecia na televisão falando sobre café. Ah, como o café era importante ao coronel. Não passava um dia sem consultar a cotação da saca. “O Zé devia era escrever um livro sobre o café. Já fez sobre a laranja, não custa fazer sobre o café. É até mais fácil...”, pensava o coronel enquanto a neta lhe dizia que há pouco havia estado com o primo famoso do avô.
- Diz ao primo que qualquer hora apareço pra vê-lo!, concluía Zé.
A neta do coronel ainda estava em choque com a pergunta anterior...
Não sei, só sei que foi assim...
A cidade já era famosa pelo nome que tinha. Aliás, quase tudo ali tinha seu nome, desde a praça à rua principal. Não havia alma naquele mundo que não soubesse de quem se tratava o famigerado coronel. Desde sempre havia vivido ali, era influente, prestativo. Daqueles que registrava os filhos com dois sobrenomes. Dele mesmo. Garcia Ribeiro. E a tradição se transferira aos netos, bisnetos e todas as gerações seqüentes.
Diziam que era afinado até no assovio. Talvez porque o coronel fora membro da banda que tocava marchinhas de carnaval no coreto da praça, talvez porque ouvira o som do vento nas folhas do cafezal que cuidava e assim aprendeu. O fato era que jamais alguém seria capaz de fazer um “o teu cabelo não nega mulata...” daquela forma.
O coronel ensinava muitas coisas. Ensinava a tocar trompete e a ver novela escondido da avó. Ensinava a pescar . Daquela pescaria tradicional, com minhoca, varinha de bambu e mão suja de terra da briga travada entre a dificuldade dos primeiros contatos da pobre bichinha com o anzol. Mas uma coisa o coronel não conseguiu ensinar. O diabo do papagaio, seu companheiro, não aprendeu nem com reza a falar. Contam que nunca deu um assovio. Nem um “curupapo”, que fosse, o bicho falou em tantos anos. Mas era mais fiel que um cão e o coronel se contentava em coçar a cabeça do “loro”, todo arrepiado e derretido com os afagos.
Toda a Coronel Benedito lhe pedia a benção quando o próprio passava pela rua. Fosse a pé, com o papagaio a tiracolo e sua bengala austera, imponente – usada apenas por finesse, não por necessidade -, caminhando pelas ruas de paralelepípedos que ele mesmo havia mandado calçar ou fosse de carro, com o vidro entreaberto acenando aos meninos que gritavam seu nome enquanto passava.
Coronel Benedito não era lá muito grande, tinhas seus pouco habitantes, mas todos, sem exceção admiravam o coronel. Tudo era muito bom, mas melhorava ainda mais quando se dizia ter vindo em nome do coronel. Parece até que prefeito havia sido, por todo o sempre, na localidade. E parece mais ainda que há muitas e muitas histórias sobre ele. Inacreditáveis fatos. Coisas que só alguém que ainda escreve ao coronel há de contar...
Diziam que era afinado até no assovio. Talvez porque o coronel fora membro da banda que tocava marchinhas de carnaval no coreto da praça, talvez porque ouvira o som do vento nas folhas do cafezal que cuidava e assim aprendeu. O fato era que jamais alguém seria capaz de fazer um “o teu cabelo não nega mulata...” daquela forma.
O coronel ensinava muitas coisas. Ensinava a tocar trompete e a ver novela escondido da avó. Ensinava a pescar . Daquela pescaria tradicional, com minhoca, varinha de bambu e mão suja de terra da briga travada entre a dificuldade dos primeiros contatos da pobre bichinha com o anzol. Mas uma coisa o coronel não conseguiu ensinar. O diabo do papagaio, seu companheiro, não aprendeu nem com reza a falar. Contam que nunca deu um assovio. Nem um “curupapo”, que fosse, o bicho falou em tantos anos. Mas era mais fiel que um cão e o coronel se contentava em coçar a cabeça do “loro”, todo arrepiado e derretido com os afagos.
Toda a Coronel Benedito lhe pedia a benção quando o próprio passava pela rua. Fosse a pé, com o papagaio a tiracolo e sua bengala austera, imponente – usada apenas por finesse, não por necessidade -, caminhando pelas ruas de paralelepípedos que ele mesmo havia mandado calçar ou fosse de carro, com o vidro entreaberto acenando aos meninos que gritavam seu nome enquanto passava.
Coronel Benedito não era lá muito grande, tinhas seus pouco habitantes, mas todos, sem exceção admiravam o coronel. Tudo era muito bom, mas melhorava ainda mais quando se dizia ter vindo em nome do coronel. Parece até que prefeito havia sido, por todo o sempre, na localidade. E parece mais ainda que há muitas e muitas histórias sobre ele. Inacreditáveis fatos. Coisas que só alguém que ainda escreve ao coronel há de contar...
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